quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Coerência


(Pintura: Garmash)

O que se entende por coerência?

Consoante o contexto em que a palavra é utilizada, assim lhe atribuímos um determinado significado.

Se nos referirmos à coerência capaz de transformar um conjunto de frases num texto, estaremos a atribuir-lhe o significado de encadeador lógico de ideias.

Se nos referirmos à coerência dos factos históricos, poderemos entender “coerência” como o mantenedor da ordem pela qual os acontecimentos tiveram lugar, ora causa, ora efeito. Segundo Saramago “A História não seria mais que a tentativa de introduzir coerência no caos dos múltiplos factos de todos os dias”.

Se procurarmos um dicionário, encontraremos algo do género “Coerência é a harmonia ou ligação entre os factos ou ideias”. “Coerente é conforme, lógico, procedente”

Enfim, muito há a discorrer sobre os significados atribuídos ao termo “Coerência”. Mas, o que importa aqui e agora é o significado que lhe é atribuído pelo senso comum, nas atitudes do quotidiano.

A coerência é uma das qualidades que mais prezo nas pessoas e nas instituições. É um guia que me facilita o caminho, indicando-me com o que posso contar. Em idênticas circunstâncias, uma pessoa coerente reage de modo semelhante. Em idênticas circunstâncias, uma organização atribui bonificações ou penalizações aos seus actores. Esta coerência é geradora de tranquilidade, de paz, que advém do facto conhecido, do facto que se executa com sentido de justiça.

Mas a coerência é indubitavelmente objectiva?

Um texto pode ser coerente em determinadas situações e não o ser noutras. O que determina a coerência é o conhecimento do mundo, dizem os estudiosos do papel da coerência na textualidade. E no nosso quotidiano? Repito a pergunta: A coerência é, indubitavelmente, objectiva? Olho ao meu redor. Olho para dentro de mim. Tento fazer uma introspecção com a maior objectividade de que sou capaz. Começo a ficar inquieta. Parece-me que o nosso sentido de coerência se balança segundo as nossas conveniências, os nossos interesses, mesmo que disso não tenhamos plena consciência. Se assim for, a coerência é subjectiva. Subjectiva, sim, conclusão a que não queria chegar.

 No nosso dia-a-dia, diferente conhecimento do mundo faz-nos reparar em múltiplas e diferentes nuances que há a considerar na Coerência. Diversos conhecimentos do mesmo mundo geram percepções diferentes, o que implica subjectivas noções de coerência. Que triste conclusão!

Cada um de nós tem dificuldade em identificar atitudes incoerentes em si próprio, mas é capaz de identificar episódios de incoerência nos vizinhos, amigos ou até nos familiares. Poderemos nada dizer, mas mentalmente acusamos de incoerente a sogra que passa a vida a dizer que gosta igualmente dos dois filhos e, no entanto, ajuda mais o que menos precisa. Poderemos não reclamar, mas parece-nos incoerente o professor que nos elogia como a melhor aluna da turma e, no entanto, nos dá a mesma nota que dá a outra colega. Até a Deus apontamos o dedo mental, pois consideramos que Ele tem de ser um exemplo de coerência, devendo amar igualmente todos os seus filhos e, no entanto, deixa alguns de nós doentes uma vida inteira.

Afinal, às vezes, também eu sou agente de incoerência. Não quero!

E é agora, agora mesmo, que devo deter-me para reflectir no que é a “coerência”. Já não me parece tão simples assim, como a tenho entendido e admirado nas atitudes de algumas pessoas. Com muita tristeza já começo a vislumbrar laivos de incoerência em mim.

O Hermetismo, no seu VI Princípio, respeita a Coerência: “Toda a Causa tem seu Efeito, todo o Efeito tem sua Causa”.

Então, ser doente é uma causa ou um efeito? Se é efeito, qual a causa? Um budista talvez me diga que se trata do Karma. Um Cristão talvez me diga que é para neles, doentes, se manifestarem as obras de Deus
Se é causa, qual o efeito pretendido? Aprendizagem da humildade?

Deus é perfeito. Logo, Deus é coerente. Mas, por vezes, eu não entendo, a Sua coerência. Talvez ainda não seja suficientemente humilde para perceber.


Ermelinda Gonçalves

2 comentários:

Ernesto disse...

Filosoficamente falando, o texto é excelente.
“A triste conclusão” é que a coerência tem muito de objectivo e muito de subjectivo. Depende do ponto de vista, do sentir e também da conveniência, consciente ou inconsciente. E não há volta a dar !!!
Teologicamente falando, parece-me bastante incoerente.
Explico porquê. Desde sempre o homem procurou explicação para o antes, o durante e o depois.
E por isso “inventou” deuses, anjos e demónios.
Mas criou-os sempre à imagem e semelhança humana. Ora um ser imperfeito o que pode dar? Algo ainda mais imperfeito…
O que parece coerente é o contrário: que um SER PERFEITO (chame-se o nome que chamar) é que criou o homem à sua imagem e semelhança.
Mas como esse SER PERFEITO é livre, também quis dar liberdade ao homem para escolher o seu caminho. Só que o homem nem sempre escolhe o melhor, por isso se degrada e banaliza. Passa do período de ouro, para o de prata e deste para o de ferro. Porquê? Incoerência total…
O humano é imperfeito, porque em vez de imitar a perfeição, prefere o imperfeito. Dá menos trabalho? Falta humildade? Provavelmente uma falha de amor!
Agradeço à Ermelinda este momento de reflexão, que me ajudará a “tentar” ser coerente comigo e com os outros.

alice marques disse...

Há tempos que pensava fazer um comentário a este belo texto. Não é fácil, pois corro o risco de tornar um simples comentário num texto. Que risco!

A temática da coerência é complexa. Afinal o que é a coerência?

Se a tomarmos como um respeito aos valores que nos foram imprimidos como marcas pela cultura em que vivemos, então não podemos dizer que somos coerentes perante nós mesmos, mas sim perante a sociedade ou cultura em que fomos criados. Se respeitarmos "demasiado" esta forma de coerência pode ocorrer o perigo de nos tornarmos robots inteligentes aparentemente diferentes um dos outros.

Temos outro tipo de marcas de coerência, estas de cariz mais profundo, que são as religiões, as crenças. Como todas as grandes Reiligiões e crenças têm um fundo arquetípico comum, podemos falar de marcas maispróximas do Ser que Somos.

Então, afinal o que é a "coerência"? E quando dizemos somos coerentes, somo-lo em relação a quê?

Quando procuramos uma coerência, exactamente o que buscamos?

Sou incoerista!