(Triptico de Jeronimus Bosch - Tentações de Sto António) |
Extracto do livro I
Dominicano Branco de Gustav Meyrink
Situando a cena: Ofélia morre. Tanto o noivo como o pai sofrem profundamente
a perda. O pai procura uma sessão mediúnica e convida o noivo a assistir.
Acontece uma manifestação.
«... O fantasma dirige-se para mim
com um rosto radioso. Cada dobra da roupa é a imagem exacta da realidade de
outrora. A mesma expressão fisionómica, os mesmos olhos tão belos e sonhadores,
as pestanas pretas compridas, as sobrancelhas bem desenhadas, as mãos brancas e
finas e até os lábios frescos e rosados. Apenas o cabelo está escondido por um
véu. Ela debruça-se meigamente para mim e eu sinto bater o seu coração; ela
beija-me na fronte e põe-me os braços à volta do pescoço. O calor tépido do seu
corpo penetra-me. “Ela voltou a viver – digo-me eu – não pode haver dúvidas” .
(...) a voz de Ofélia ressona em mim... “não me
abandones! Ajuda-me! Ele apenas traz
uma máscara semelhante a mim”.
(...) Serro os dentes e torno-me frio, com o frio da
desconfiança.
“Quem é este “ele”
que poderá trazer a máscara semelhante a Ofélia?”pergunto-me interiormente, olhando fixamente a aparição nos olhos
como se aí fosse ler uma resposta;
então vejo o rosto do fantasma paralisar numa expressão de insensibilidade
petrificada como uma estátua, e as pupilas contraírem-se como se estivessem sob
o efeito de um raio luminoso.
É o retrato súbito de um ser que tem medo de ser
reconhecido; mas por mais rápido que ele possa ter sido, o tempo de um
batimento do coração, foi o bastante para me aperceber nos olhos do fantasma de
uma minúscula imagem que não é a minha (Ofélia), mas a de um rosto estranho.
Simultaneamente a aparição afastou-se de mim para se
lançar, de braços estendidos, ao torneiro (pai de Ofélia) que, chorando
copiosamente de alegria e de amor, a abraça e lhe cobre o rosto de beijos.
Sou tomado por um horror indescritível. Sinto os cabelos
eriçarem-se-me na cabeça de terror. O ar que respiro paralisa-me os pulmões
como um vento glacial.
É o rosto de um ser estranho de uma beleza indescritível,
o rosto de uma virgem e ao mesmo tempo de um éfebo.
Os olhos sem pupilas, e vazios como os de uma estátua,
têm reflexos opalinos.
Os lábios finos e exangues, delicadamente levantados nos
cantos, têm uma expressão dificilmente perceptível, mas tanto mais terrível, de
uma inexorável vontade de destruição universal.
Vê-se os dentes brancos brilharem através da pele fina
como seda: o sorriso lúgubre de um esqueleto.
Tenho a impressão de que este rosto é o ponto de
convergência de dois mundos. Como uma lente, concentra os raios de um reino de
destruição saturado de ódio; atrás espreita o abismo de toda a destruição, do
qual o Anjo da Morte é apenas uma pálida imagem .
Pergunto-me com angústia: “Que figura é esta que assim
reveste os traços de Ofélia? De onde vem? Que força cósmica animou esta cópia?
(...)
O diabo não se manifesta por fins tão derisórios; não me
lembro se foi a voz do ser primordial em mim que o murmurou (...) mas eu
compreendi que “É a força impessoal de todo o mal que, operando segundo as leis
naturais mudas, suscitando prodígios pelo poder da magia, na verdade entrega-se
a uma fantasmagoria infernal por via de contraste. O que assim traz a máscara
de Ofélia não é um ser dotado de substância. É a imagem mágica conservada pela
memória do torneiro que se tornou visível e palpável em condições metafísicas e
cujos processos e princípios ignoramos, talvez com a finalidade diabólica de
alargar ainda mais o abismo que separa o império dos mortos do mundo dos vivos.
É a alma da pobre costureira (médium) histérica - que ainda não atingiu a forma
pura, cristalizada, de uma individualidade - que, brotando do corpo do médium
como uma pasta magnética flexível e moldável, forneceu o envelope com o que o
desejo do velho torneiro criou este fantasma. A cabeça de Medusa, símbolo do
poder petrificante de uma potência de aspiração para baixo, está aqui a
trabalhar a uma escala reduzida (...)
(...)
Palavras do responsável pela reunião, dirigindo-se ao noivo, numa profecia:
(Cabeça de Medusa - Escola Flamenga - 1600) |
Jovem, renuncia às vaidades do mundo! Percorri a Europa
inteira (mostra as sandálias) e posso dizer-lhe isto: não há uma rua, mesmo nas
aldeias mais humildes, onde hoje não haja comunicadores com o além. Em breve o
movimento vai alargar-se ao mundo inteiro como uma torrente. A potência da
Igreja católica será aniquilada, pois o Salvador virá em pessoa.
Continuando o noivo-narrador:
(...)
Depois de ter visto a cabeça da Medusa, ouvi a sua voz
pela boca do homem de cabelos compridos (responsável pela reunião), uma e outra
revestidas pela máscara da espiritualidade. É a língua viperina de uma cobra
das trevas que fala pela sua voz. Ela fala do Salvador e pensa: Satã. Ela diz:
as feras comerão de novo a erva dos campos! Por erva dos campos ela entende: os
simples – a multidão – e por feras: os demónios do desespero.
O que há de terrível na profecia é que, sinto-o, ela vai
realizar-se! E ainda mais terrível é que ela é uma mistura de verdade e de
perfídia infernal! São as máscaras vazias dos mortos que ressuscitarão e não
aqueles que amámos, não os desaparecidos que são chorados pelos da Terra! Elas
regressarão para os vivos dançando, mas não será só na chegada do milénio: será,
isso sim, um baile do inferno, uma alegria Satânica esperando o canto do galo
de uma quarta-feira de Cinzas cósmica que nunca terá fim!»
Ouvindo o Espírito:
(…)
"Os servidores da Medusa esperam, enviando aos
homens os fantasmas dos mortos, abreviar a hora do seu triunfo! Estão a criar
um espaço vazio, que deveria levar à loucura e aos extremos do desespero, e que
deveria engolir tudo o que vive; mas eles não conhecem a lei da “Realização”! Não
sabem que a nascente de todo o socorro só brota do reino do espírito no momento
em que a necessidade se faz sentir.
E esta necessidade são eles mesmos que a criam.
Chamam aqui abaixo os novos profetas. Eles deitam abaixo
a antiga Igreja sem saber que preparam desta forma as vias para a nova. Eles
querem devorar tudo o que vive, mas apenas devoram o que está em estado de
putrefacção. Eles querem arrancar do coração dos homens a esperança do além,
mas apenas arrancam o que está destinado a cair. A antiga Igreja de hoje é
obscura e privada de luz, mas a sombra que ela projecta no futuro é uma sombra
branca”