segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Cabeça de Medusa

Para reflexão apenas e, quem sabe?, debate posterior.

(Triptico de Jeronimus Bosch - Tentações de Sto António)


Extracto do livro I Dominicano Branco de Gustav Meyrink

Situando a cena: Ofélia morre. Tanto o noivo como o pai sofrem profundamente a perda. O pai procura uma sessão mediúnica e convida o noivo a assistir. Acontece uma manifestação.

«... O fantasma dirige-se para mim com um rosto radioso. Cada dobra da roupa é a imagem exacta da realidade de outrora. A mesma expressão fisionómica, os mesmos olhos tão belos e sonhadores, as pestanas pretas compridas, as sobrancelhas bem desenhadas, as mãos brancas e finas e até os lábios frescos e rosados. Apenas o cabelo está escondido por um véu. Ela debruça-se meigamente para mim e eu sinto bater o seu coração; ela beija-me na fronte e põe-me os braços à volta do pescoço. O calor tépido do seu corpo penetra-me. “Ela voltou a viver – digo-me eu – não pode haver dúvidas” .
(...) a voz de Ofélia ressona em mim... “não me abandones! Ajuda-me! Ele apenas traz uma máscara semelhante a mim”.
(...) Serro os dentes e torno-me frio, com o frio da desconfiança.
“Quem é este “ele” que poderá trazer a máscara semelhante a Ofélia?”pergunto-me interiormente, olhando fixamente a aparição nos olhos como se aí fosse  ler uma resposta; então vejo o rosto do fantasma paralisar numa expressão de insensibilidade petrificada como uma estátua, e as pupilas contraírem-se como se estivessem sob o efeito de um raio luminoso.
É o retrato súbito de um ser que tem medo de ser reconhecido; mas por mais rápido que ele possa ter sido, o tempo de um batimento do coração, foi o bastante para me aperceber nos olhos do fantasma de uma minúscula imagem que não é a minha (Ofélia), mas a de um rosto estranho.
Simultaneamente a aparição afastou-se de mim para se lançar, de braços estendidos, ao torneiro (pai de Ofélia) que, chorando copiosamente de alegria e de amor, a abraça e lhe cobre o rosto de beijos.
Sou tomado por um horror indescritível. Sinto os cabelos eriçarem-se-me na cabeça de terror. O ar que respiro paralisa-me os pulmões como um vento glacial.

(Jan Madyn)

(...)
É o rosto de um ser estranho de uma beleza indescritível, o rosto de uma virgem e ao mesmo tempo de um éfebo.
Os olhos sem pupilas, e vazios como os de uma estátua, têm reflexos opalinos.
Os lábios finos e exangues, delicadamente levantados nos cantos, têm uma expressão dificilmente perceptível, mas tanto mais terrível, de uma inexorável vontade de destruição universal.
Vê-se os dentes brancos brilharem através da pele fina como seda: o sorriso lúgubre de um esqueleto.
Tenho a impressão de que este rosto é o ponto de convergência de dois mundos. Como uma lente, concentra os raios de um reino de destruição saturado de ódio; atrás espreita o abismo de toda a destruição, do qual o Anjo da Morte é apenas uma pálida imagem .
Pergunto-me com angústia: “Que figura é esta que assim reveste os traços de Ofélia? De onde vem? Que força cósmica animou esta cópia?
(...)
O diabo não se manifesta por fins tão derisórios; não me lembro se foi a voz do ser primordial em mim que o murmurou (...) mas eu compreendi que “É a força impessoal de todo o mal que, operando segundo as leis naturais mudas, suscitando prodígios pelo poder da magia, na verdade entrega-se a uma fantasmagoria infernal por via de contraste. O que assim traz a máscara de Ofélia não é um ser dotado de substância. É a imagem mágica conservada pela memória do torneiro que se tornou visível e palpável em condições metafísicas e cujos processos e princípios ignoramos, talvez com a finalidade diabólica de alargar ainda mais o abismo que separa o império dos mortos do mundo dos vivos. É a alma da pobre costureira (médium) histérica - que ainda não atingiu a forma pura, cristalizada, de uma individualidade - que, brotando do corpo do médium como uma pasta magnética flexível e moldável, forneceu o envelope com o que o desejo do velho torneiro criou este fantasma. A cabeça de Medusa, símbolo do poder petrificante de uma potência de aspiração para baixo, está aqui a trabalhar a uma escala reduzida (...)
(...)

Palavras do responsável pela reunião, dirigindo-se ao noivo, numa profecia:

(Cabeça de Medusa - Escola Flamenga - 1600)
(...) A estrela Fixtus saiu da sua órbita e dirige-se agora para a Terra. A ressurreição dos mortos está próxima. Já os primeiros precursores estão em marcha. Os espíritos dos nosso desaparecidos circularão entre nós semelhantes a nós, e as feras comerão de novo a erva dos campos como outrora no Jardim do Éden (...)
Jovem, renuncia às vaidades do mundo! Percorri a Europa inteira (mostra as sandálias) e posso dizer-lhe isto: não há uma rua, mesmo nas aldeias mais humildes, onde hoje não haja comunicadores com o além. Em breve o movimento vai alargar-se ao mundo inteiro como uma torrente. A potência da Igreja católica será aniquilada, pois o Salvador virá em pessoa.

Continuando o noivo-narrador:
(...)
Depois de ter visto a cabeça da Medusa, ouvi a sua voz pela boca do homem de cabelos compridos (responsável pela reunião), uma e outra revestidas pela máscara da espiritualidade. É a língua viperina de uma cobra das trevas que fala pela sua voz. Ela fala do Salvador e pensa: Satã. Ela diz: as feras comerão de novo a erva dos campos! Por erva dos campos ela entende: os simples – a multidão – e por feras: os demónios do desespero.

O que há de terrível na profecia é que, sinto-o, ela vai realizar-se! E ainda mais terrível é que ela é uma mistura de verdade e de perfídia infernal! São as máscaras vazias dos mortos que ressuscitarão e não aqueles que amámos, não os desaparecidos que são chorados pelos da Terra! Elas regressarão para os vivos dançando, mas não será só na chegada do milénio: será, isso sim, um baile do inferno, uma alegria Satânica esperando o canto do galo de uma quarta-feira de Cinzas cósmica que nunca terá fim!»


Ouvindo o Espírito:
(…) 
"Os servidores da Medusa esperam, enviando aos homens os fantasmas dos mortos, abreviar a hora do seu triunfo! Estão a criar um espaço vazio, que deveria levar à loucura e aos extremos do desespero, e que deveria engolir tudo o que vive; mas eles não conhecem a lei da “Realização”! Não sabem que a nascente de todo o socorro só brota do reino do espírito no momento em que a necessidade se faz sentir.
E esta necessidade são eles mesmos que a criam.
Chamam aqui abaixo os novos profetas. Eles deitam abaixo a antiga Igreja sem saber que preparam desta forma as vias para a nova. Eles querem devorar tudo o que vive, mas apenas devoram o que está em estado de putrefacção. Eles querem arrancar do coração dos homens a esperança do além, mas apenas arrancam o que está destinado a cair. A antiga Igreja de hoje é obscura e privada de luz, mas a sombra que ela projecta no futuro é uma sombra branca”


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