quinta-feira, 21 de abril de 2011

As palavras que nunca disse






(Foto: Rarinda)



Era fim de tarde, já passava das cinco, a aldeia estava encharcada de uma chuva miudinha que regava melancolia. Alberto de Jesus estava preso em casa espreitando as gotas que lhe escorriam na janela. Sua mão ossuda cristalizava os anos que conseguiu sobreviver e agora apenas sentia as recordações carnudas. Um desgosto porém, lhe preenchia o pensamento, via-o materializado em cada espelho, em cada esquina, era a dor da sua incapacidade. Alberto foi apadrinhado pela incapacidade de falar com o seu filho, seu único filho, Ricardo de Jesus. Este era o seu único elo consciente entre o fim e a imortalidade.
Foi num impulso forte, que nem ele contava, em desmedida coragem que Alberto pegou numa folha de papel amarelada e com elevado esforço, começou a escrever as letras que nunca pensou ser capaz:

“Ricardo meu filho, preciso de te falar, estou sem algumas capacidades, o diálogo é uma delas, aliás, nunca tive esse maldito!
Possivelmente já não tenho qualquer valor para ti. Eu, pelo contrário reconheço que cada vez mais és importante para mim. Afinal fui a pessoa que te concebi, sou teu pai. Sei que passámos juntos tempos difíceis de dor e angústia que tentei disfarçar como pude para que essa dor não chegasse até ti. Bem ou mal eu tive a coragem de te ter, de tentar educar, alimentar e vestir até seres homem e partires na caminhada da tua vida. Sabia bem que um dia isso iria acontecer e sempre lutei para que estivesses preparado para esse dia, que tivesses formação académica e maturidade para seres homem completo e não passares privações por falta de meios económicos, por falta de experiência de vida. Gostaria tanto de te ter ensinado muito mais, tudo aquilo que aprendi com o meu próprio sofrer. Meu Deus, o que daria para que não passasses o mesmo por que passei! Mas agora é tarde, partiste para longe, para lá do alcance de qualquer eco...
Recordo momentos da tua infância que continuam bem guardados nas minhas memórias, os teus primeiros passos, as tuas primeiras palavras o sorriso e os abraços meigos que me davas. Tudo isso é inesquecível e guardo-o como meu grande tesouro. Agora estás longe, sinto que já não me sentes, pena minha, culpa minha.
Preciso da tua ajuda e colaboração para as pequenas coisas, para os pequenos favores do dia-a-dia. Seria bom se um dia pudesse contar contigo, mas neste momento já não o espero.
O objectivo legítimo de um pai para com o seu filho é deixá-lo preparado para fazer frente à vida e que esta se alicerce em valores sérios como o amor, a justiça a lealdade o respeito e a gratidão.
Gostaria de te ensinar que, quando colocamos o nosso empenho e força em subir uma montanha e este objectivo nos é negado, temos que voltar a lutar incansavelmente até conseguir, nunca devemos desistir até convertermos as derrotas em vitórias. Nunca te deves dar por vencido mantendo-te fiel e digno a princípios nobres. Gostaria de partilhar contigo as tuas preocupações na luta pelos teus objectivos, onde eu queria tanto ajudar-te.
Um dia eu sonhei, sonhei que tinha criado um homem que me trouxe alegrias, que me divertia com ele e que me protegia. Esse filho era o meu confidente aquele irmão que não tive e estava cheio de orgulho dele, sofria com as suas preocupações, sorria com as suas vitórias e era feliz.
Falo sempre de ti com prazer, com vaidade, deixa-me orgulhar de ti.
Quando o resto do tempo passar e eu já não estiver mais junto de ti, recorda-me como um homem sonhador que sempre te amou e onde me encontrar terás sempre a minha bênção. Suplico-te que me ajudes a dar vida ao amor que agora parece estar a morrer e colabora para que tu sejas uma parte digna da criação”.

Nunca a chegou a enviar. Não foi preciso porque o seu dia acabara de chegar e foi o próprio filho que em visita de rotina o encontrou sentado, prostrado sobre a mesa, ainda com a folha de papel por entre os dedos gastos.
Alberto acabara de lhe falar.


José Cavalheiro Homem

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