quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

À procura de entendimento sobre “encarnação” no budismo…Parte I




Quem por nascimento e envolvimento sociocultural teve na sua formação a influência judaico cristã ou mesmo predominantemente católica, como acontece neste nosso país, não deve ou não pode ficar indiferente ao que vê passar-se, quer pelo mundo quer no seu meio, sobre o papel de outras ou novas religiões, e a assimilação de formas de culto ou diferentes conceitos de doutrina ou “fé” que não era comum existirem.
Cabe assim a cada um procurar o conhecimento sobre tais assuntos, como o faz noutras áreas do saber ou que se relacionam com a sua vida, e buscar a reflexão sobre eles.

Encontra-se neste caso, o budismo que, confinado à Ásia, tem vindo a expandir-se, sobretudo a partir dos finais do século passado, por influência do movimento internacional de refugiados ou imigração, estabelecendo noutras regiões do globo comunidades numerosas que trouxeram consigo a sua cultura e a sua religião, assumindo assim um papel de “nova” religião universal.
É em países da Ásia onde se encontram mais seguidores do budismo como no Sri Lanka, Tailândia, Coreia, Japão e China, entre outros.

Sobre o fundador desta religião, Buda, de seu nome Sidharta Gautama, sabe-se que viveu no norte da Índia, no sexto século AC, e que o conhecimento da sua vida, por não existir fonte de matéria do seu tempo, “ baseia-se principalmente na evidência dos textos canónicos… escritos em páli, uma língua da antiga Índia”.

A tradição budista entende que a seguir à sua morte, se realizou um concílio de 500 monges, para determinar o autêntico ensino do Mestre, sem todavia ter sido assente por escrito, mas sim memorizado pelos discípulos, tendo a escrita efectiva dos textos sagrados ou canónicos  sido iniciada cerca de 500 anos depois, e mesmo outros relatos da sua vida somente apareceram mil anos depois do seu tempo.

Estes factos, apreciados pelos historiadores e peritos, determinaram o seguinte comentário no Dicionário de Religiões Vivas: “ As “biografias” são tão tardias em origem como repletas de matéria lendária e mítica, e os mais antigos textos canónicos são produtos de um longo processo de transmissão oral que evidentemente inclui revisões e muita adição”.
Em partes desses cânones, ocorrem pormenorizados e longos relatos, tais como o da mãe do Buda, rainha Maha –Maia, que veio a concebê-lo num sonho… como contou o sonho ao rei, seu marido, e este convocou 64 eminentes sacerdotes hindus, e alimentando-os e vestindo-os, lhes pediu uma interpretação que foi assente por escrito.
E daí ocorreu o incomum nascimento do Buda num jardim de árvores–sal chamado Bosque Lumbini…. A rainha deitou mão a um ramo da mais alta árvore-sal do bosque e segurando-o em pé deu à luz.

Há ainda histórias igualmente minuciosas sobre a infância do Buda, os seus encontros com jovens admiradoras, as suas peregrinações e praticamente todos os eventos da sua vida, não sendo de admirar que a maioria dos peritos rejeite esses relatos como lendas e mitos.
Um texto moderno, publicado no Sri Lanka, e amplamente difundido, “Manual do Budismo”, fornece um relato tradicional simplificado da vida do Buda:

“No dia de lua cheia de Maio do ano 623 AC nasceu no distrito de Nepal um príncipe indiano saquiano, de nome Sidatha Gotama (transliteração do nome em páli). O rei Sudodana era seu pai, e a rainha Maha-Maia era sua mãe. Ela morreu alguns dias depois do nascimento da criança e Maha Pajapati Gotami tornou-se sua mãe adoptiva”.
”Aos 16 anos de idade ele casou-se com a prima a bela princesa Iasodara”.
“Por uns treze anos….levou uma vida de esplendor…”
“Com a marcha do tempo, começou gradativamente a compreender a verdade. Em seu 29º ano, que marcou o ponto de virada na sua carreira, nasceu o seu filho Rahula. Ele considerou a sua prole como impedimento, pois entendeu que todos, sem excepção, estavam sujeitos ao nascimento, à doença e à morte. Compreendendo assim a universalidade da tristeza, ele decidiu descobrir uma panaceia para essa doença universal da humanidade”
“Assim, renunciando aos prazeres palacianos, deixou a casa certa noite…cortou o cabelo, vestiu a roupa simples de um asceta, e saiu a peregrinar como Buscador da Verdade”.

Desta forma, estes poucos detalhes biográficos contrastam claramente com os relatos fantásticos encontrados nos textos canónicos e com excepção do ano de seu nascimento, eles são comummente aceites.
 
Mas como aconteceu a Iluminação ?
O “ponto de viragem na sua carreira” como a biografia refere, dá-se quando pela primeira vez na vida, ele vê um enfermo, um ancião e um cadáver, deixando-o aflito em relação ao significado da vida, interrogando-se por que é que os homens nascem, apenas para sofrer, envelhecer e morrer. Daí, viu um homem santo que renunciara ao mundo em busca da verdade, impelindo-o a renunciar à família, bens e nome principesco e passar os seis anos seguintes buscando a resposta de mestres e gurus hindus, mas sem êxito, dedicando-se a um proceder de meditação, jejum, yoga e extremo desprendimento, não obstante não ter encontrado nenhuma paz ou iluminação espiritual.
Veio a perceber que este desprendimento extremo era tão inútil quanto a vida faustosa que levara antes, adoptando um estilo de vida que evitasse esses extremos, e a que chamou de Caminho Médio.
Continuando, sentou-se para meditar debaixo de uma figueira dos pagodes indianos, decidindo que a resposta devia ser encontrada na sua própria percepção, resistindo a ataques e tentações do diabo Mara, firmando-se nesse seu propósito em meditação por quatro semanas (ou sete segundo alguns), até que supostamente transcendeu todo o conhecimento e entendimento e atingiu a iluminação.

Por esse processo, na terminologia budista, Gautama tornou-se o Buda – o Despertado ou Iluminado.
Ele atingira o alvo derradeiro, o estado de paz e iluminação perfeita, libertado do desejo e do sofrimento – o Nirvana.
Tornou-se conhecido como sábio da tribo sáquia e não raro dirigia-se a si mesmo como Tatagata (um que veio ‘para ensinar’).
Este evento da Iluminação impulsionou o Buda a ensinar outros sobre a sua recém encontrada verdade, o seu dharma.

Na cidade de Benares proferiu o primeiro e provavelmente mais importante sermão, a cinco bicus – discípulos ou monges. Ensinou que para se ser salvo, deve evitar-se tanto o proceder de indulgência sensual como o do ascetismo, seguindo o Caminho Médio, e observar as Quatro Nobres Verdade, que podem ser resumidas de forma breve:
1-    Toda a existência é sofrimento.
2-    O sofrimento vem do desejo ou anseio.
3-    A cessação do desejo significa o fim do sofrimento.
4-    Consegue-se a cessação do desejo seguindo-se o Caminho Óctuplo, controlando a conduta, o pensamento e a crença da pessoa.

Importa reter que este sermão sobre o Caminho Médio e as Quatro Nobres Verdades constituem a essência da ILUMINAÇÃO e é considerado o epítome de todo o ensino de Buda, não reivindicando inspiração divina para o sermão, mas dando mérito a si próprio com as palavras “descoberto pelo Tatagata”.
Alega-se que o Buda, no seu leito de morte, disse aos discípulos: “Buscai a salvação apenas na verdade; não procureis ajuda de ninguém, excepto de vós mesmos”. Assim, segundo o Buda, a iluminação vem, não de Deus, mas sim de empenho pessoal em desenvolver raciocínio correcto e boas acções.

Naquela época, esse ensino foi bem recebido na sociedade indiana, porquanto condenava as gananciosas e corruptas práticas religiosas promovidas pelos brâmanes hindus, ou casta sacerdotal e ainda o rígido ascetismo dos jainistas e outros cultos místicos. Acabou com os sacrifícios e rituais, as miríades de deuses e deusas, e o fatigante sistema de castas que dominava e escravizava todos os aspectos da vida das pessoas.
Em suma, prometia libertação a todos os que se dispusessem a seguir o caminho do Buda.

E assim, o Buda e os cinco bicus saíram a pregar em toda a extensão do vale do Ganges, e pessoas de todos os níveis e condições sociais tornaram-se seus discípulos.
Cerca de 200 anos depois da morte de Buda, o imperador da Índia Asoca adoptou o budismo e deu-lhe apoio estatal, contribuindo desde então para sua ampliação e influência por todas as regiões  do sudeste asiático e extremo oriente.

A história regista que o budismo veio (virtualmente) a desaparecer nesse seu país de origem por volta do século XIII, e já no século XX tanto na China, como no Tibete e outros países da região, veio a sofrer sérios reveses por questões políticas, ao passo que nos países do ocidente o conceito de buscar a “verdade” dentro da própria pessoa parece exercer um amplo atractivo, e pela sua prática de meditação prover uma alternativa ao estilo de vida agitada ocidental, lembrando aos “povos ocidentais a dimensão espiritual das suas vidas”, conforme escreveu o exilado Dalai Lama do Tibete.

Embora seja costumeiro falar-se do budismo como religião única, na realidade ele está dividido em várias escolas do pensamento, baseadas em diferentes interpretações da natureza do Buda e dos seus ensinos, cada qual tendo doutrinas próprias, práticas e escrituras, a que acrescem as influências de culturas e tradições locais dos diversos países onde se implantou, constituindo diversificados caminhos do budismo, com muitas denominações e seitas. E todos afirmam basear as suas crenças e práticas nos ensinos de Buda.


Armando Guedes

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