(Pintura: Leonid Afremov) |
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade,
in "Os Amantes Sem Dinheiro"
2 comentários:
Se eu pudesse reter todas as lembranças, as boas e as "menos boas", as palavras que eu nunca disse, os carinhos retidos, mas o amor quando é verdadeiro, ele chega ao seu destino através das palavras que eu nunca disse e dos carinhos que eu não exprimi. O amor entre mãe e filho é algo inexplicável, quando verdadeiro é algo mágico, e eu tive a felicidade de experimentar os dois papeis.Talvez um dia eu consiga alargar os meus horizontes e partilhar esse sentimento com todos os que o conseguirem receber.
Nós somos sempre os eternos meninos aos olhos das nossas mães. Mas é das melhores benções poder tê-las nas nossas vidas. Bem hajam.
Belo hino ao fim da adolescência.
Quem dizer que não há bons escritores portugueses então não conhece a nossa cultura.
Beijinhos
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